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JOSE ANTONIO DE OLIVEIRA RODRIGUES

I. Sobre o autor

José Antonio Rodrigues, é um carioca de 41 anos, formado em História e Turismo, escritor com 3 livros publicados pela Litteris: "Coisas da Vida", "Um logo e Tortuoso Caminho" e "A Vasa do Destino".


II. Obras Avulsas


O CRACHÁ

Havia chegado o dia 17 de julho de 2000, uma sexta feira, o tão sonhado dia, o dia que enfim se livraria definitivamente daquela mesa, daqueles papéis, daquelas paredes, enfim daquela enfadonha rotina. Maldita seja aquela sala, que durante 55 anos de sua vida representou tanto a sua prisão, como lhe permitiu, perante a sociedade, ser considerado um homem honesto, um bom marido e um bom pai. Aquela sala representou para ele, por todos estes anos, uma dicotomia que lhe deu o sustento de sua família e ao mesmo tempo a opressão de uma rotina que envenenou sua alma. Aqueles cinco metros quadrados limitaram sua liberdade e com o passar dos anos, o fez acreditar que seus sonhos não passaram de meras bobagens de um adolescente tolo. Ele lera em algum livro que os sonhos, quando pelo menos não tentamos realiza-los, apodrecem dentro de nós e esta coisa podre que carregamos, com o tempo, se exterioriza, aflora, nos transformando em pessoas chatas, tristes, saudosistas e deprimidas, enfim, insuportáveis. O fim da juventude representa o fim de muitas coisas, principalmente da coragem e da valentia de ?de peito aberto? enfrentar o mundo e tudo o que dele vier. Morrem os jogadores de futebol, os astros do Rock, as bailarinas, as atrizes... Nascem os entregadores de pizza, os balconistas, os caixas de banco... A rotina, o costume e a proteção caminham de mãos dadas. Era contraditório, mas conforme se aproximava este dia, o que antes parecia uma prisão, se transformara na tal proteção. No fundo estava com medo de deixar aquela sala, aqueles papeis, aquela mesa, enfim a sua velha rotina, que agora o protegia e que ainda o conectava com o mundo. Envelhece-se basicamente de duas formas: Na aparência física, é quando a resistência diminui, a barriga cresce, o cabelo cai ou fica branco ou os dois, as rugas aparecem, etc. E na atmosfera psicológica, é quando começamos a esquecer as coisas, o raciocínio não é mais o mesmo, não servimos para algumas tarefas, etc. Contudo, o pior é quando se perde a sintonia com o novo, com o atual, com as mudanças. Continuamos ouvindo as mesmas músicas, vendo os mesmos filmes, lendo e relendo os mesmos livros/autores, indos aos mesmos bares ou pelo menos aos que sobrevivem, acreditando que tudo do passado foi melhor do que hoje se apresenta. A seleção de 70, os Beatles, a beleza da Martha Rocha... Não compreendemos que vivemos em um mundo que não para de girar e que nos obriga a avançar sempre, mesmo que não queiramos. Curtir o que passou é bom e até defender, em alguns momentos os velhos tempos, é normal. Mas o que é velho tem que dar lugar ao novo, a vida sempre fora assim, é a evolução da espécie, os feios dinossauros... Ele lera que um meteoro colidiu com a terra a milhões de anos dando fim à era dos dinossauros, hoje o meteoro que estava dando um fim a coisas jurássicas como ele era o computador, esta maldita máquina estava extinguindo os que não conseguiram se adaptar aos novos tempos. São tantos botões, tantas janelas, tantas fórmulas no Excel.

Abriu uma velha bolsa de couro, dada por um cliente há uns 20 anos atrás, ele nem se lembrava mais quem a havia dado e foi guardando seus velhos pertences, sua foto com Getúlio Vargas era motivo de orgulho. Almoçava todos os dias no Bar Luiz e um dia quem lá estava, ele o pai dos pobres, o homem que obrigou seu patrão a lhe dar uma carteira de trabalho. Rasgou algumas fotos de contemporâneos já mortos, não iria mais precisar daquilo, faltava pouco para encontrá-los. Porém a foto de sua amada Tereza junto ao Outeiro da Glória, ele guardou com carinho. Ela, que também não fazia mais parte deste mundo há algum tempo, nunca saiu do porta retratos sobre a mesa, a foto foi tirada quando ela tinha 16 anos. Todas aquelas fotos, todos aqueles pertences pessoais que estavam sendo guardados ou indo para o lixo, não o fizeram viajar mais nos anos idos do que quando segurou seu velho crachá e observou a figura nele estampada, com um certo receio, se olhou no espelho que sempre trazia em sua gaveta. O que fora feito daquele jovem imberbe, cheio de vida, que tinha o mundo a sua frente, um mundo sem paredes, papeis, números ou balancetes. Um mundo somente feito de aventuras e amores inesquecíveis tinha vergonha de olhar para aquela foto, aquele jovem não merecia isto, não merecia aquele fim...

Rua da Carioca 16, segundo andar, ultima mesa à esquerda próxima à janela. Ali o velho Silveira passou cinco décadas e meio de sua vida sentado trabalhando como contabilista, vendo a vida passar por aquela janela como se fora uma tela de cinema. A Santa Clara Serviços Contábeis, conheceu Silveirinha ainda menino, trabalhando como mensageiro em 1945 aos 15 anos, com a aposentadoria do velho Souza, virou Silveira, auxiliar de contabilidade, o Silveira se transformou no Sr. Silveira, técnico em contabilidade e posteriormente no velho Silveira responsável pela emissão de notas fiscais, o único local que ainda não fora informatizado, o único local onde ele ainda podia trabalhar, pelo menos até aquele dia.

Naquela velha mesa de mogno escuro, que também iria ser trocada por uma mais moderna, adaptada para receber aquela maldita maquina, Silveira trabalhou e viu o tempo passar. Daquela janela viu um Rio de glamour com seus homens de chapéu e ternos elegantes se dirigindo para o teatro Íris ou para o bar Luiz, aguardar os vespertinos, viu mulheres lindas em vestidos sóbrios se dirigindo para confeitaria Colombo, também viu vedetes baixinhas, troncudas, mas que despertavam paixões, tanto em operários como em figurões da política, viu tempos de amor e de medo, viu o exército batendo nos estudantes, a cavalaria dispersando a multidão bem em frente aquela janela em 64. Viu com excitação, as saias diminuírem de tamanho, era final da década de 60, viu também o jeans ficarem sujos e os cabelos dos homens crescerem, ouviu pelo seu rádio Telefunken aquelas palavras simples que falavam de amor nas vozes de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra, serem substituídas por coisas sem nexo como dois e dois são cinco... Daquela janela ele viu o Rio dos velhos carnavais, repletos de bandas e cordões. Daquela janela também viu Tereza, com quem dividiu 28 anos de sua vida, Tereza que lhe dera uma filha, que hoje vive nos Estados Unidos, local de melhores oportunidades. Tereza se foi, sua filha também se foi, cartas escassas, lembranças vagas de uma menina loira, do avião e daquela mulher de olhar sereno e cabelos bancos, do caixão baixando a sepultura, lembranças...

Viu pela primeira vez Tereza por aquela mesma janela, em uma linda tarde de verão, dezembro de 1955, esta data ele jamais esqueceria. Aquela menina apressada, cabelos loiros, cintura fina, saia rodada marrom, blusa branca de gola, sapatos pretos e meias brancas, fizeram o jovem de 24 anos sonhar, já tendo de imediato à certeza de que aquela mulher seria sua futura esposa. A partir daquela data a esperava todos os dias, sempre apressada, sempre linda e sempre no mesmo horário. Meu Deus, mesmo horário, ao lembrar da rotina da falecida esposa, lembrou-se que hoje estava se encerrando 55 anos de uma longa rotina. Acordar às 07 horas, pegar sua condução, que do bonde, passou para o ônibus e agora para o metrô. Iniciar seu trabalho às 08h00min almoçar religiosamente as 12h00min no bar Luiz, seu chefe fizera um acordo com o gerente e todos os funcionários lá almoçavam e no final do mês ele quitava a despesa, as 17h00min tudo se encerrava. As 1830hs chegava a sua velha casa de vila no Méier, para primeiro ouvir o rádio e depois se render à televisão, as novelas e aos programas humorísticos. Mas ele tinha a esperança de que com Tereza tudo mudasse, o que não ocorreu. Um dia, depois do almoço, caminhou pela Rua da Carioca e na loja de tecidos do velho Gomes viu a moça. De perto era mais linda do que ele podia imaginar, não resistindo, entrou na loja e comprou um tecido qualquer, lógico que a atendente foi ela. Depois foi conversar com Gomes e marcaram um chope. Gomes, boêmio, conhecido por assediar todas as suas funcionárias, foi logo desanimando Silveira, quando este perguntou quem era a pequena de cabelos loiros. Descobriu então seu nome e que vivia com a mãe, uma paralítica que era um estorvo em sua vida, o pai sumira no mundo quando a esposa apresentou os primeiros sintomas da doença nos ossos. Ela morava em Quintino e sustentava a casa sozinha, Gomes até confessou que tentara algo com ela, mas virtude ali era o que não faltava, pensara em mandá-la embora, mas era uma boa funcionária, e ele tinha tantos pecados, tantos filhos bastardos, que pelo menos esta boa ação ele queria jogar na cara de São Pedro quando chegasse às portas do céu. ?Vai à luta, ela merece um homem como você, mas aviso vai ser difícil, ela é muito reservada e ama aquela mãe como ninguém?. Voltou todos os dias e comprava tecidos, 20 cm de um, 10 cm de outro e depois da décima vez ela perguntou se ele era algum alfaiate. Existem momentos na vida da gente que falamos as coisas de uma forma tão espontânea que parece que foram ditas direto por nossa alma, sem o crivo da razão. ?Eu venho aqui todos os dias para te ver, e gostaria muito de poder te encontrar depois do trabalho?. Tereza ficou em silêncio, guardou o tecido e saiu sem dizer uma palavra. No final do expediente lá estava ele, com um ramo de flores e pronto para um pedido de desculpas. Ela sorriu, aceitou as rosas, mas foi embora pegar o seu bonde, de tanto insistir ela aceitou que ele a acompanhasse até o ponto, conversaram, se conheceram e marcaram novos encontros. Tereza enfim acabou contando toda a sua vida, sua mãe, sua luta diária para sustentar a casa e no final de alguns meses o namoro teve iniciou. Uma prima ficava com sua mãe doente durante as seções dominicais no cine Odeon e nos os lanches na Colombo. Silveira conheceu sua futura sogra, sua doença e sua revolta, assim como a casa pobre em Quintino. Em 1959, já estavam casados, cuidou daquela sogra, revoltada e enciumada como se fora a sua mãe, que, diga-se de passagem, também não aprovou o seu casamento, sua sogra morreu em 1980 e em 1982 morreu seu pai, seu amigo e companheiro de todas as horas, sua mãe se mudara para sua casa, e seu gênio difícil atormentou sua vida conjugal até sua morte em 1984. Em 1970 havia nascido Beatriz, sua princesa, sua paixão, mas os filhos são nossos até certa idade, depois a vida os leva. Aos 20 anos ela foi fazer um curso de inglês nos EUA, estes cursos de seis meses morando e trabalhando em uma casa de família. Apaixonou-se pela família que a recebeu e principalmente pelo filho mais velho do casal Robert, lá se casou e nunca mais voltou, escrevia sempre, mas as cartas foram diminuindo até se tornarem raras, a última foi no início do ano passado informando que ele era avô de um lindo garotão. Tereza morreu de câncer no estômago em 1996 sem rever a filha, ele viu sua esposa perder aos poucos à vitalidade e a beleza, mas o companheirismo e o amor ao marido a acompanharam até o fim. Olhou pela janela e viu prostitutas, mendigos, pivetes...

Jovens, onde estavam aqueles jovens que tomaram porrada da polícia em 68 e que encheram a Candelária em 85 pelas Diretas, e até mesmo aqueles ?mauricinhos? que pintaram a cara nos anos 90 desfilando pela Rio Branco pedindo o Imptimam do Collor, onde estavam àqueles jovens, aqueles sonhadores? Talvez, a vida apagara seus sonhos, como apagou os sonhos daquele jovem que estava no crachá.

O filho do Sr. Souza, Sr. Cláudio, que assumira o lugar do pai depois de sua morte, modernizara tudo, colocou portas de vidro, divisórias e os malditos computadores. E o Silveira fora esquecido, como esquecida estava a Rua da Carioca, o Largo da Carioca, a confeitaria Colombo, a velha Copacabana de tantos passeios sem pivetes e sem assaltos. Chegara enfim a vez de modernizar seu setor, Sr. Cláudio lhe apresentou um jovem cheio de vida, bonito, alto, forte... Junto, alguns carregadores colocavam caixas no chão, eram novos móveis e um computador. Tudo seria montado naquele fim de semana, tudo seria diferente na segunda.

- Meu velho e querido Silveira, tem algo que queira passar para o nosso amigo Marcelo?

Ele olhou para os dois jovens parados a sua frente e em silencio deu um sorriso fraternal para ambos se despedindo em seguida, quando ia saindo com sua bolsa de couro, voltou, olhou para o jovem substituto, pediu o seu crachá e disse: ?Converse bastante com este jovem, enquanto ele ainda te escuta, pois este não me escuta mais, falou lhe entregando de presente seu velho e amarelado crachá.

Saiu lentamente, ninguém perguntou para onde iria, não houve festa de despedida, desceu as escadas, passou pela velha loja de tecido do Gomes que hoje era uma livraria, comprou um livro do Rubens Fonseca, os livros seriam de hoje em diante seus fieis companheiros. Parou no bar Luiz, tomou um chope, pediu um filé aperitivo, se lembrou dos velhos garçons, tantas conversas, discussões sobre futebol, tanta festa pelo Tri e o silêncio dos anos de chumbo. Em seguida pegou o metrô para o Maria da Graça. No dia seguinte, sábado, seguiria para sua nova moradia o Lar dos Anciões, em Jacarepaguá, um lugar bonito ao ?pé da serra?. Olhou bem a Praça Tiradentes, o decadente Carlos Gomes, as prostitutas e os mendigos. Partiu tendo somente uma certeza. Não voltaria mais a ver a Rua da Carioca.